quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Jogos Eletrônicos e Violência — um Caleidoscópio de Imagens

Jogos Eletrônicos e Violência — um Caleidoscópio de Imagens
Lynn Alves1
Resumo
O artigo apresenta os resultados da tese de doutorado Game over – jogos eletrônicos e violência, apontando
que os games podem se constituir em espaços de aprendizagem e ressignificação de desejos, atualizando-os,
sem necessariamente levar os jogadores a comportamentos e atitudes hediondas e socialmente inaceitáveis.
Dentro desta perspectiva, o trabalho enfatiza que é fundamental analisar a violência mediante os aspectos
sociais, econômicos, culturais, afetivos, etc, já que este fenômeno se constitui em uma linguagem que o
sujeito utiliza para dizer algo. A investigação conclui que os jogos eletrônicos e de RPG devem ser
explorados principalmente nos ambientes escolares, já que possibilitam a construção de conceitos vinculados
aos aspectos sociais, cognitivos, afetivos e culturais. E também, que os jogos eletrônicos de diferentes
narrativas e conteúdos atuam na Zona de Desenvolvimento Proximal dos sujeitos, de forma lúdica, prazerosa
e atrativa.
Palavras-chave: Jogos eletrônicos. Violência. RPG. Espaços de aprendizagem.
Estrangeiro. É essa a sensação de um pesquisador quando imerge em um mundo, a
priori, desconhecido. Investida da minha intenção de averiguar o mundo dos jogos
eletrônicos, mergulhei nesse novo universo, o que se constituiu em um grande desafio,
principalmente porque nunca havia jogado antes, mas apenas observado os jovens na
fruição dos games.
Com um gravador e uma câmera na mão, estava determinada a escutar os sujeitos da
pesquisa, acompanhada da minha hipótese inicial de que a interação com os jogos
eletrônicos não produzia comportamentos violentos nos jovens.
Imersa nessa cultura da simulação2, apropriei-me dos novos códigos e procurei
estabelecer relação com os referenciais teóricos que nortearam a construção da tese Game
over – jogos eletrônicos e violência3, o que efetivou a assimilação da linguagem dos jogos.
Assim, durante o percurso, pude concretizar os objetivos inicialmente estabelecidos
no projeto de pesquisa, o qual se propunha a analisar a influência dos jogos eletrônicos no
cotidiano dos jogadores e suas possíveis implicações em um comportamento “violento”,
que poderia refletir nos ambientes sociais e, principalmente, na escola.
1 Doutora em Educação e Comunicação, Professora da UNEB, e-mail: lynnalves@yahoo.com.br.
Endereço – Av. Silveira Martins s/n – Cabula - Salvador – Bahia – telefone: 71-387-5058.
2 Na perspectiva de Turkle (1997, 1989), a cultura da simulação emerge mediante os modelos computacionais
como seus representantes e os jogos eletrônicos como elementos que compõem estas representações.
Representações que instauram uma lógica não linear e fazem parte do universo da Geração Screenagers.
3 Tese de doutorado defendida em 07/06/04 na Faculdade de Educação da UFBa. A tese encontra-se na
integra na URL: www.comunidadesvirtuais.pro.br
2
A escuta sistemática dos “participantes entrevistados” permitiu a estruturação da
tese, que traz à tona o olhar dos sujeitos que jogam e constroem inúmeras relações entre os
games e suas vidas.
Ao ouvir os sujeitos e trazer para esta investigação o olhar e o discurso de cinco
jovens que vivem intensamente no universo dos games, pude confirmar que, na perspectiva
destes autores e atores, os games, estes agenciamentos sociotécnicos (LÈVY, 1993), se
constituem em espaços de elaboração das questões ligadas às suas subjetividades.
Outro objetivo também concretizado foi à sistematização teórica dos referênciais
que norteiam a relação jogos eletrônicos e violência.
As questões norteadoras que permitiram alcançar os objetivos propostos foram:
1) A interação com os jogos eletrônicos que exibem e disponibilizam informações e
cenas de violência provocam alterações no comportamento dos sujeitos que vivem imersos
no mundo tecnológico?
2) Qual a concepção de violência dos jovens que interagem com os jogos
eletrônicos considerados violentos?
3) Quais as relações que os jovens estabelecem em torno dos jogos eletrônicos –
violência?
4) As pessoas que interagem com os jogos eletrônicos, considerados violentos, saem
reproduzindo no cotidiano as cenas de violência exibidas nesses programas?
Estes questionamentos se constituíram em trilhas que subsidiaram as entrevistas e
observações das atividades realizadas pelos jovens envolvendo jogos eletrônicos ou não.
Depois de uma imersão no referencial teórico que subsidiaria a leitura e organização
das informações colhidas durante a pesquisa foi possível realizar o trabalho de campo,
tomando as seguintes hipóteses:
A violência deve ser vista de forma construtiva e se constitui em uma linguagem,
uma forma de dizer algo.
A violência vende por favorecer um efeito terapêutico, possibilitando aos sujeitos
uma catarse, na medida em que canaliza os seus medos, desejos e frustrações no Outro,
identificando-se ora com o vencedor ora com o perdedor das batalhas.
3
Visto desta maneira, a violência passa a ser considerada de forma construtiva, como
um dos motores propulsores do desenvolvimento afetivo e cognitivo dos sujeitos. Nesse
sentido, os jogos podem se constituir em espaços de elaboração de conflitos, medos e
angústias.
A violência presente no mundo contemporâneo vem se constituindo em uma
linguagem (ROCHA, 1997; DIOGENES, 1998), isto é, uma forma de dizer. Os sujeitos que
utilizam a violência enquanto linguagem podem estar sinalizando a necessidade da
mediação dos adultos, já que o contato com os seus familiares está cada vez mais esparso,
devido às necessidades de ordem econômica, que tem levado os adultos (e até alguns
jovens) a longas jornadas de trabalho para manter o orçamento familiar. Estes, portanto,
cada vez mais vivem entregues a si próprios, perdendo a referência dos indivíduos que
podem lhes possibilitar a sua estruturação como sujeito, levando-os a uma perda de
identificação e de ressignificação de valores. Estes valores passam a ser reconstruídos
mediante os diferentes grupos em que o jovem se insere para ser aceito. Esse processo de
aceitação pode levar a comportamentos transgressores, como a utilização de drogas,
vandalismos, enfim, atos que os distanciam dos adultos e os aproximam dos seus pares.
Considerando o desenvolvimento de todo o trabalho de pesquisa, penso que a
interação com os jogos eletrônicos não produz comportamentos violentos nos jovens. A
violência emerge como um sintoma que sinaliza questões afetivas (desestruturação familiar,
ausência de limites, etc) e socioeconômicas (queda do poder aquisitivo, desemprego, etc...).
Esta averiguação tomou como referencial metodológico à abordagem qualitativa,
que não objetivava “provar” nada, mas demonstrar como foram apreendidas as questões
que nortearam a investigação, analisados os problemas e o alcance dos resultados.
Percurso que permitiu a concretização dos objetivos e a construção de um olhar
diferenciado da relação jogos eletrônicos e violência.
É importante ressaltar que em alguns momentos, as conclusões referentes aos
sujeitos não puderam ser universalizadas, uma vez que os “participantes entrevistados”
apresentaram posturas e discursos diferentes em relação à problemática da pesquisa.
Contudo, a conclusão deste trabalho ratificou a tese de que os jogos eletrônicos
considerados violentos não geram violência, isto é, a relação não é de causa e efeito.
4
É fundamental analisar o fenômeno da violência mediante os aspectos sociais,
econômicos, culturais, afetivos, etc.
Outra aprendizagem importante, relaciona-se ao fato de compreender os jogos como
espaços de aprendizagem que devem ser explorados principalmente nos ambientes
escolares, já que possibilitam a construção de conceitos vinculados aos aspectos sociais,
cognitivos, afetivos e culturais.
Enfim, os jogos eletrônicos de diferentes narrativas e conteúdos atuam na Zona de
Desenvolvimento Proximal dos sujeitos, de forma lúdica, prazerosa e atrativa.
O lugar dos jogos eletrônicos
Apresento uma análise das categorias investigadas durante as entrevistas e que
permitiram construir um olhar diferenciado da relação jogos eletrônicos e violência.
Os consoles de videogame foram os primeiros elementos da cultura da simulação
presente na vida dos “participantes entrevistados”. Para Caótico, Conan e Expert, eles
constituíram um passaporte para os jogos de computadores. Tony e Narciso acompanharam
a evolução de suas plataformas e ainda se mantêm fiéis à estrutura dos videogames4.
Estes Screenagers5 buscam interagir com os jogos eletrônicos mais recentes, que
exigem rapidez de movimentos e demandam uma inteligência sensório-motora, o que
ratifica a idéia de que essas gerações apresentam formas distintas de pensar e compreender
o mundo. Abrem muitas janelas simultaneamente, interagem com as tecnologias de forma
diferenciada, isto é, escutam música, vem televisão, estudam, usam o computador, batem
papo nos chat, fazem tudo ao mesmo tempo, exigem, portanto, interatividade. Em palestra
realizada no II Encontro de Educação a Distância em Salvador, em novembro de 2003, o
professor Nelson Pretto denominou essa geração de ALT /TAB, exatamente por essa
mobilidade de interagir com diferentes janelas no computador. A ação ALT/TAB permite
ao usuário acessar as janelas que vem trabalhando e estão momentaneamente minimizadas
4 Narciso e Expert foram nomeados de acordo com suas histórias de vida e os demais indicaram os nomes que
gostam de utilizar.
5 Expressão utilizada por Rushkoff (1999) para referir-se a geração que nasceu a partir da década de
oitenta, depois do controle remoto, joystick, mouse, etc...
5
No que se refere a jogabilidade dos games, os sujeitos da pesquisa identificam em
alguns títulos, a exemplo do Counter Strike6, uma beleza estética nas diferentes telas que
apresentam ações violentas e o desenvolvimento de estratégias e habilidades presentes
nesse tipo de jogo. Percebe-se, então, que essa interação pode estimular a construção de
novas possibilidades cognitivas, acionadas quando os players7 são desafiados.
Quanto ao nível de sociabilidade promovido pelos jogos eletrônicos, o discurso dos
sujeitos enfatizou a experiência de jogar com outros parceiros e adversários. Esta
possibilidade permite criar novas estratégias e intercambiar soluções para os desafios, tanto
nos games que envolvem apenas dois jogadores por jogada, como naqueles que podem ser
jogados com múltiplos usuários, nos quais, as trocas podem acontecer em um mesmo
espaço geográfico ou na rede Intranet ou Internet.
Caótico, Expert, Conan e Tony — são sujeitos que compreendem os jogos como
possibilidades de fazerem amigos, de serem aceitos, de estarem dentro de um grupo,
pertencerem a uma tribo, criarem vínculos, enquanto Narciso prefere jogar sozinho.
Embora os jogos de videogame não permitam mais que dois sujeitos por vez (com
raras exceções), os gamers entrevistados encontram formas de socializar as partidas, os
jogos, o que além de potencializar uma variedade de aventuras lhes permitem estabelecer
relação entre as diferentes plataformas.
Neste movimento, quem sabe mais ensina ao que, momentaneamente, sabe menos, o
que se constitui uma demanda nos jogadores de aprenderem uns com os outros, num
processo de trocas coletivas com os pares, atuando desta forma na Zona de
Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY, 1994) dos sujeitos envolvidos. Estes aspectos
são intensificados nos jogos em rede, como o Counter-Strike, e nos jogos on-line, a
exemplo do Quake.
6 O Counter Strike (CS) é uma modificação (Mod)6 do jogo Half-Life (HL), criado
por Minh Le e Jess Cliffe, e é considerado pelos gamers como excelente, tendo
recebido mais de dez prêmios concedidos por revistas e sites especializados, no
período de 1999 a 2000. Baseado num programa de simulação de batalhas utilizado
para o treinamento do Exército americano, o game já foi baixado da Internet mais de dois milhões de vezes,
desde do seu lançamento. Dentro da classificação de jogos eletrônicos, está na categoria combate
(FRAGOSO, 1996).
7 Players e Gamers são expressões utilizadas para se referir aos jogadores de games, sendo que a primeira
também é usada para os jogadores de RPG.
6
RPG, leitura, escrita e novas possibilidades narrativas8
Foi possível perceber que a compreensão da escrita como uma técnica cognitiva que
possibilita a sistematização das idéias, para serem socializadas e registradas enquanto uma
produção do sujeito foi ressignificada.
Os autores e atores redigem, escrevem em pequenas telas, telas essas de batepapo,
em que o texto não exige o “domínio” de uma escrita mais elaborada, mas a rapidez e
fluidez de informações pontuais, que têm o objetivo de socialização e o que vem, cada dia
mais, sinalizar a emergência de um outro código – uma escritura dinâmica.
Uma escrita que se dá através de ícones e da incorporação de “imagens de síntese”
que, são construídas com base em um modelo que irá engendrar outras imagens
alternativas, formando, assim, uma nova escrita, que modificará profundamente nossos
métodos de representação, hábitos visuais, modos de trabalhar e de produzir, tocar os
sentidos e criar uma impressão física forte e envolvente. Esse surgimento de uma nova
escrita pode ser denominada de “ideografia dinâmica” (LÈVY, 1998), que supõe infinitas
interfaces homem/máquina, o que se configura em uma tecnologia intelectual de grande
flexibilidade.
Esta escrita utilizada pelos “participantes entrevistados” nas salas de bate papo, nos
fóruns, nos blogers, também está repleta de imagens. E, a imagem como uma técnica
cognitiva, possibilita ao leitor/escritor associações lineares e não-lineares, na medida em
que organizam uma linguagem do pensamento com representações do inconsciente, no qual
a concepção de tempo não é linear e, sim, atemporal. Atemporal, por que as imagens e
8 Nos últimos anos tem crescido de forma significativa a discussão em torno das possibilidades pedagógicas
dos RPG. Existem atualmente várias listas de discussão, que reúne jogadores de RPG, pesquisadores e
especialistas que vem discutindo as relações entre RPG e Educação. Merece destaque a lista
rpg_em_debate@yahoogroups.com, que tem como objetivo socializar os diferentes usos e aplicações do Role
Playing Game, debatendo idéias e buscando encontrar soluções e novas aplicações para os jogos de RPG, que
pode se constituir em uma ferramenta do trabalho pedagógico.
Em setembro de 2004 foi realizado o III Simpósio RPG & Educação, que reúne jogadores e pesquisadores
para discutir as questões pedagógicas relacionadas com os RPGs.
http://www.simposiorpg.com.br/simposio.htm.
Outra referência significativa foi o trabalho de PAVAO, Andréa. A aventura da leitura e da escrita entre
mestres de role-playing games. São Paulo: Devir, 2000
Atualmente vem sendo desenvolvido na UNEB - Departamento de Educação, o projeto de pesquisa Ensino
On-line: Trilhando novas possibilidades pedagógicas mediadas pelos jogos eletrônicos, que enfatiza a lógica
dos jogos de RPG, na modalidade Ensino a Distância.
7
conteúdos que permeiam esta instância psíquica não seguem a ordem seqüencial dos fatos
ocorridos.
Os livros de RPG ocupam um lugar diferenciado no universo dos “participantes
entrevistados”. Conan que além de jogar, mestra as partidas de RPG, sempre busca novas
inspirações para as suas histórias nos livros, articulando inclusive o conteúdo literário da
faculdade na qual estuda, com os enredos que cria nos jogos.
As narrativas das histórias dos games, principalmente dos RPGs, mobilizam
Caótico, Conan e Narciso, a buscar nos games um conjunto de aspectos, que vão além da
repetição de movimentos e comportamentos violentos. Estes sujeitos querem atuar e criar
novas possibilidades de ação.
A violência e os jogos eletrônicos
Pude apreender que, para os entrevistados, o conceito de violência não se limita
apenas à violência física e estrutural. Existe um tipo de violência que incomoda mais o
grupo da pesquisa: a violência simbólica, principalmente, se ela vem dos seus pares ou de
figuras parentais.
Os sujeitos acreditam que a violência é inata e, desta forma, somos todos
potencialmente violentos, cabendo à cultura o papel de nos controlar. Assim, são ignorados
os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais que envolvem a problemática da
violência.
As informações coletadas durante pesquisa mediante o discurso e as observações
feitas enquanto acompanhava os sujeitos nos jogos, apontaram para a idéia dos jogos como
espaço de ressignificação e de catarse. Os autores e atores da pesquisa defendem o
argumento de que a interação com estes suportes tecnológicos tem uma ação terapêutica, na
medida em que o jogador pode extravasar as suas energias e emoções reprimidas,
desviando, assim, estes sentimentos do seu semelhante. Desta forma, o sujeito libera o
stress através da participação vicária.
Os “participantes entrevistados” ilustravam essas conclusões com exemplos do seu
cotidiano, nos quais, muitas vezes, o simples fato de jogar fazia com que se sentissem
8
aliviados, ratificando, assim, as premissas da teoria da catarse, tanto no que se refere à
psicologia (SANTOS, 2003; LAPLANCHE e PONTALIS, 1992) quanto à área de
comunicação (SÍLBERMAN e LIRA, 2000) que, ao estabelecer interlocução com esta
concepção, descarta os efeitos nocivos das mensagens dos medias.
Narciso, defende claramente a concepção de que os jogos o tornaram mais violento,
na medida em que associa o seu nível de agressividade ao seu contato com os jogos desde a
infância. Porém, uma análise detalhada da sua história é suficiente para percebermos que
existem questões de ordem afetiva relacionadas com a sua estrutura familiar e que
potencializam o seu comportamento agressivo, manifestado mais fortemente na sua relação
com os objetos, principalmente, os suportes e periféricos dos videogames, como, por
exemplo: joystick, Cd-rom, o próprio videogame; cada vez que se defronta com a perda, os
destrói.
Logo, confirma-se à proposição de que a violência emerge muito mais como uma
linguagem, uma forma de dizer, que marca questões afetivas (desestruturação
familiar,ausência de limites, etc) e sócio-econômicas (queda do poder aquisitivo,
desemprego, etc...). No caso de Narciso, este dado foi confirmado, ao narrar a sua trajetória
de vida, pontua sua difícil relação com o pai, à fuga para as drogas, o processo de depressão
em que vive imerso e o leva, muitas vezes, à perda do sentido da vida.
Tais comportamentos registram a necessidade da mediação dos adultos na vida dos
jovens, que precisam ser aceitos. Esse processo de aceitação, quando não intermediado,
pode levar a comportamentos transgressores, como utilização de drogas, vandalismos,
inserção em uma cultura diferenciada do seu grupo, como o caso de Caótico9, enfim, atos
que os distanciam dos adultos ou marcam um outro lugar e os aproximam dos seus pares.
Portanto, a violência apresentada nestes suportes tecnológicos favorecem um efeito
terapêutico que possibilita aos sujeitos uma catarse, na medida em que canaliza os seus
medos, desejos e frustrações no outro, nos personagens que permeiam o universo de
imagens dos games. Os gamers se identificam, ora com o vencedor, ora com o perdedor das
batalhas. Vista desta forma, a violência passa a ser considerada de forma construtiva, como
9 Caótico é gótico e o seu nickname emerge a partir da junção das expressões que designam a cultura gótica e
a cultura do caos.
9
motor propulsor do desenvolvimento desses indivíduos. Nesse sentido, os jogos se
constituem em espaços de elaboração de conflitos, medos e angústias.
Logo, é possível dizer que, por meio das imagens ficcionais e reais, o sujeito,
através dos jogos, realiza os seus desejos e necessidades afetivas, visto que pode projetar
idéias e fantasias, onde a tela atuaria como um espelho que possibilita um novo espaço
(virtual) para aprender a viver. O sujeito passaria a se constituir através de uma “linguagem
da tela”, em que intercambiaria significantes, e em que cada um deles, é uma multiplicidade
de partes, fragmentos e conexões.
Assim, na perspectiva desses jovens, os jogos funcionam como uma válvula de
escape, liberadora de questões intrínsecas aos sujeitos e que precisam ser resolvidas.
Isso promove um efeito catártico para a agressividade existente em todos nós,
ocupando as horas de prazer e lazer como um mero passatempo, portanto, não são
encarados como uma compulsão. Embora os “participantes entrevistados” joguem
diariamente, no caso específico deste grupo, isso não se constitui em uma compulsão, uma
vez que eles desenvolvem outras atividades sociais, nas quais os jogos não entram em cena.
Jogam para relaxar, para começar um novo dia, para fluir as emoções.
Os sujeitos da pesquisa, em nenhum momento, fazem a transposição do universo
ficcional dos jogos para o seu cotidiano; pontuam inclusive que aqueles que o fazem
apresentam algum distúrbio psíquico.
Em consonância com as idéias dos autores e atores da pesquisa, ratifico o meu
posicionamento anterior de que os jovens que fazem a transposição da tela, do virtual para
o real, utilizam a linguagem da violência como uma forma de dizer algo, apontando aos
adultos questões de ordem emocional, social, cultural e econômica. Estes sujeitos podem
estar a demandar uma atenção maior dos seus pais e ou pares e buscam experimentar
situações de risco no intuito de (re)significar o seu lugar enquanto sujeito.
É importante ressaltar que os autores e atores da pesquisa, em nenhum momento, se
mostraram violentos e que não apresentam em suas histórias dados que os coloquem nesse
lugar.
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Isso confirma a idéia de que não devemos proibir os jovens de jogarem games
violentos, mesmo porque as narrativas dos jogos estão se tornando mais complexas e
ampliam as possibilidades de interatividade, palavra-chave no discurso desses sujeitos10.
Todos eles enfatizam a importância de ver os resultados, de se aproximar do real;
são fascinados pelo universo do jogo que, dentre os suportes tecnológicos existentes, é o
que mais possibilita a imersão em outros mundos.
Estes jogos atraem diferentes níveis geracionais porque estimulam a competição, o
desafio de vencer a máquina e o outro, o que, muitas vezes, pode se constituir em uma
experiência excitante que promove níveis de dificuldade nas diferentes fases do jogo. Um
exemplo interessante é a famosa derrota, em 1997, de Gary Kasparov – campeão mundial
de xadrez — pelo programa Deep Blue. Contudo, não se trata de resgatar a dicotomia
homem/máquina, mas de pensar que existe ainda uma dificuldade, em especial da
imprensa, em compreender que esta relação não é mais de disputa, na qual existe um lado
que domina e outro que obedece, o que reifica a máquina. O homem não abre mão de sua
autonomia e controle das coisas, o que torna distante a situação retratada no filme clássico
da ficção científica da década de 60, 2001 – Uma Odisséia no espaço11, no qual o
computador Hall assume o controle da nave e dos tripulantes e simboliza a primazia da
máquina sobre o homem. Ou ainda, numa versão mais atualizada, a exemplo de Matrix12 ou
na animação Metropolis13 A eterna dicotomia homem/máquina perde seu significado neste
início de um novo milênio. Os meios tecnológicos de comunicação e informação assumem,
assim, o papel de rearticulador e reorganizador de toda a sociedade. A imaginação, em
contraponto com a razão da era antropocêntrica, passa a predominar e os ícones assumem
10 Para Murray, “quanto mais construtivo for o ambiente da história, mais oportunidades oferecerão para ser
algo mais que a repetição de padrões destrutivos. O objetivo dos ambientes maduros de ficção não é de
excluir o material antisocial, senão incluí-lo de modo que o usuário possa enfrentar a ele, dando-lhe forma e
trabalho (1999, p.184).
11 Título original: 2001: A Space Odyssey . 2001: uma odisséia no espaço. Tempo de Duração: 148 minutos,
Ano de Lançamento (Japão): 1968, Direção: Stanley Kubrick. Com Keir Dullea e Gary Lockwood, William
Sylvester, Daniel Richter, Douglas Rain, Margaret Tyzack, Leonard Rossiter Robert Beatty e Sean Sullivam
12 Título original: THE MATRIX Reloaded. Direção: Larry e Andy Wachowski. Com: Keanu Reeves,
Laurence Fishburne, Carrie Anne-Moss, Jada Pinkett-Smith, Hugo Weaving, Monica Belucci. Estados
Unidos, 2003, duração: 138 minutos.
13 Título Original: Metropolis. Tempo de Duração: 90 minutos, Ano de Lançamento (Japão): 2001,
Direção:Rintauro. Roteiro: Katsuhiro Otomo. Fotografia: August Jakobsson. Vozes: Yuka Imoto, Kei
Kobayashi, Kohki Okada.
1 1
um papel relevante; os conhecimentos construídos no mundo da razão são rearranjados
pelos meios de comunicação, podendo desaparecer ou sofrer colorações diferentes. Caótico,
por exemplo, quando nos traz a “mente digital”14, sinaliza uma compreensão da técnica que
não se limita à extensão da mente humana.
O que os sujeitos desejam é se sentirem interatores (MACHADO, 2002) do
processo, falantes e não-falantes e, ao mesmo tempo, obter respostas imediatas, utilizar a
tela do computador, da TV e/ou das máquinas de jogos eletrônicos como um espaço para
novas formas de escrever o mundo, o que caracteriza, assim, uma dimensão comunitária,
baseada na reciprocidade e permite a criação e interferência por parte dos indivíduos.
Os atores e autores da pesquisa imergem no mundo dos games e da rede mediados
por avatares15 que permitem o exercício do faz-de-conta e uma maior interatividade,
possibilitam a aprendizagem, a comunicação, o estabelecimento de novos vínculos,
relacionamentos, desenvolvem habilidades motoras, lingüísticas e sociais, potencializam a
construção de novos olhares, significados e significantes para a sociedade na qual estão
inseridos. Essas múltiplas possibilidades dos games, torna possível aprender diferentes
conteúdos, caracterizando este agenciamento sociotécnico como um novo espaço de
aprendizagem que se constitui em espaços do saber vivo, real, exigindo o rompimento com
a linearidade que ainda se institui na sala de aula convencional, com práticas pedagógicas
pautadas no paradigma moderno.
Diante do exposto, pude aprender e apreender através do processo de investigação
que a interação com os jogos eletrônicos considerados violentos não geram
comportamentos semelhantes. Estas atitudes estão relacionadas com outros aspectos como,
14 No que se refere ao papel ocupado pelos jogos, Caótico afirma: “O videogame é, acima de tudo, o contato
com o lúdico, mas o lúdico traz contribuições. Assim, uma coisa que muita gente fala é que os jogos
desenvolvem o pensamento lógico e a inteligência. Porque, no computador, você esta interagindo com uma
mente digital, vamos dizer assim, que oferece algum desafio e, às vezes, é bastante inteligente. Tem esse
contato com o lúdico e tem o desenvolvimento da inteligência.“
15 Os avatares se caracterizam como uma persona virtual, assumida pelos participantes de jogos e de
diferentes comunidades virtuais, “[...] que inclui uma representação gráfica de um modelo estrutural de corpo
(presença de braços, tentáculos, antenas, etc.), modelo de movimento (o espectro de movimento que esses
elementos, juntos, pode ter), modelo físico (peso, altura, etc.), e outras características. Um avatar não
necessita ter a forma de um corpo humano, pode ser um animal, planta, alienígena, máquina, ou outro tipo
e/ou figura qualquer. Alguns sistemas interativos no ciberespaço, que incorporam o conceito de avatar, foram
criados a partir de 1995, em função da tecnologia VRML Virtual Reality Modeling Language), e são
conhecidos como MUD (Multi-Users Domains). São espaços virtuais onde estabelecemos contatos sensoriais
com outros indivíduos, de diferentes partes do mundo, e que estão se transformando também em palco de
experimentações artísticas (PRADO e ASSIS, s/d)15.
1 2
por exemplo: questões de ordem familiar, afetiva e socioeconômica, a exemplo das
histórias de Expert16 e Narciso, que sinalizaram dados importantes do relacionamento
familiar e que podem estar refletindo no comportamento dos “participantes entrevistados”.
Logo, a agressividade que emerge na dinâmica dos jogos atua de forma construtiva,
na medida em que possibilita aos sujeitos ressignificarem as suas insatisfações e, portanto,
exercem um efeito catártico; um potencial dos games que se constituiu num dos aspectos
mais enfatizados pelos sujeitos da pesquisa.
Outro dado importante se refere a espetacularização e à estetização das imagens
violentas apresentadas nos jogos eletrônicos que podem levar a uma banalização da
violência, tornando necessária à mediação de outros sujeitos para fomentar a discussão
acerca do que está sendo visto. No discurso dos sujeitos, foi possível perceber que este
universo imagético não é visto de forma maniqueísta, isto é, as imagens violentas são
naturalizadas. Tal constatação me remeteu ao filme A Primeira Vista17, no qual o
protagonista, cego, ao fazer uma cirurgia e voltar a enxergar, se depara com imagens nada
belas do cotidiano, como a miséria dos pedintes. Tais cenas o incomodam e fazem com que
questione o fato de a mocinha da história passar pela calçada sem demonstrar nenhum tipo
de constrangimento e avaliar a importância de enxergar cenas tão violentas e ficar
indiferente. Tratava-se de uma violência que tem causas estruturais.
Cenas como essas se repetem em vários momentos do nosso dia-a-dia, seja
presencialmente, ou através das inúmeras telas que inundam o nosso universo.
No que se refere à aprendizagem, os “participantes entrevistados” confirmaram que
é possível aprender e construir conceitos cognitivos, afetivos e sociais na interação com os
jogos eletrônicos, principalmente, os classificados como de simulação, a exemplo dos jogos
da série Sim (SimCity, SimLife, SimAnt, SimHealth e The Sims)18, nos quais o jogador
16 Refiro-me ao seguinte episódio narrado por Expert: “Eu já fui vítima de violência. Eu já fui assaltado, mas
eu consegui recuperar. Eu não me dei por vencido e fui atrás dele. E eu pergunto: Você não teve medo? Ele
não estava armado? E ele responde: não. Eu estava com raiva. Ele estava com a faca, ele levou meu boné. Aí
eu esperei ele. Eu estava de bicicleta. Aí eu esperei ele sair um pouquinho, foi na orla, passei na menina do
caldo de cana e pedi o facão como se fosse para puder ajeitar alguma coisa, sentei na bicicleta e fui atrás
dele.”
17 Título Original: At First Sight. Tempo de Duração: 129 minutos, Ano de Lançamento (EUA): 1999,
Direção: Irwin Winkler, com Val Kilmer, Mira Sorvino e Kelly McGillis
18 O primeiro e o último mais conhecido no Brasil e citado pelos entrevistados
1 3
deve desenvolver novas formas de vida, gerir sistemas econômicos, constituir famílias,
enfim, simular o real, antecipar e planejar ações, desenvolver estratégias, projetar os seus
conteúdos afetivos e sociais. Como não tem regras rígidas, esses games admitem a
emergência de vários estilos de jogos, singulares, construindo uma narrativa bem particular,
idiossincrática. Nesses enredos, é possível projetar questões particulares dos envolvidos nos
games, ressignificando-as, isto é, tornar-se autor e ator de suas histórias, como por
exemplo, o caso de Conan que sempre trazia para a trama aspectos do seu cotidiano.
Os jogos de RPG, em especial, também permitem uma riqueza pedagógica que deve
ser explorada; a constituição de clans ou clãs permite a troca de novos conhecimentos nos
diferentes níveis, o que fomenta a criação de comunidades virtuais (RHEINGOLD, 1997)
que intercambiam diferentes saberes. Estas tendem a se tornar permanentes, mesmo depois
do término das partidas, o que os torna espaços que possibilitam aos seus gamers, players a
partilha de algo importante. Esta magia não implica, necessariamente, em especial no caso
dos sujeitos dessa pesquisa, na transposição das realidades apresentadas na tela para a vida
real, isto é, os conteúdos violentos são vivenciados dentro do enquadre do jogo, sem
nenhuma repercussão no dia a dia.
As conclusões aqui apresentadas foram fundamentadas no discurso dos sujeitos da
pesquisa, na interlocução com os autores e na imersão no locus dos jogadores.
Ressalto que os autores e autores, ao longo da pesquisa, passaram por um processo
de metamorfose em suas ações e narrativas, o que permitiu adentrar no seu universo, atenta
para o fato de que, cada vez que olhava o caleidoscópio constituinte dos sujeitos, ele tinha
uma nova configuração, visto que o cotidiano desses sujeitos tinha dinamicidade e
permitiram uma aproximação das suas vidas. Vidas e histórias que, como no caleidoscópio,
se entrecruzavam.
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