Cara Professor(a)"**
Se for verdade, vai como fato. Se for mentira, vale como fábula:
- Dizem que no Japão o Imperador rege sua conduta por um protocolo que determina que ele não presta homenagem, nem reverencia ninguém. É toda a nação que deve homenageá-lo. A única categoria à qual ele presta homenagens é à dos professores. Então, com as honrarias do Imperador do Japão, posso começar esta carta.
- Não sei desenhar!
É o que declaram a maioria dos jovens que chegam à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e os adolescentes ou adultos; alguns deles, professores como você, que me procuram para as aulas de recuperação que chamei de Desinibição do Traço. Dispus-me a encontrar o momento em que pararam com esta atividade. Encontrei a alfabetização como sendo o momento de ruptura**. É depois desta etapa que a criança passa a fazer esta declaração:
- Não sei desenhar!
Sei de algumas das carências que impedem você de desenvolver, na Pré-escola, um trabalho de qualidade com relação ao desenho da criança. Carências de espaço, de infra-estrutura, de materiais, de apoio de toda ordem e... de informações específicas sobre a linguagem, as técnicas e os procedimentos das artes figurativas. Diante deste quadro você sai à cata de informações que a instrumentem, a curto prazo, para lidar com esta atividade: técnicas possíveis, propostas de exercícios - sem nos determos, aqui, no sofrimento que é elaborar planejamentos.
* Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, arquiteto e artista plástico. ** Vai no feminino, pois tal é a maioria. "'Fato demonstrado em Ensino e Desenho que apresentei ao mestrado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 1984.
Perdizes, outubro de 1990
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Mas sei também que a criança perde a capacidade de desenhar ao se alfabetizar e ser alfabetizada. A maioria dos professores que estimulam as crianças ao desenho não desenha; eles mesmos foram crianças que também perderam esta capacidade.
Quero instigá-la: considero covardia o fato de alguém que não desenha estimular o outro a desenhar! Não... não se chateie neste ponto da leitura. Fui enfático só para alertar quanto à gravidade do fato. Será difícil o diálogo de quem não desenha com quem o faz, ou seja, entre professor e aluno. Faltarão raciocínios em todos os níveis da especificidade deste fazer.
- Como saber das técnicas, das linguagens e dos procedimentos todos? O professor que não se expressa plasticamente, ao ver o desenho do aluno, inevitavelmente perguntará: - O que é isto? Esta pergunta trata de reduzir ao domínio das palavras o que é território das imagens, e portanto pensamento de outra natureza. A fala que se reporta a imagens deve ser de natureza divergente. O diálogo professor-aluno dificilmente estimulará o segundo a outros desenhos, a novas explorações ou à utilização de seu trabalho plástico como ponto de partida para outras manifestações artísticas, ou, quiçá, científicas.
Poucos especialistas, ao se referirem ás categorias do pensamento da criança, mencionam a capacidade de figurar. Este fator e mais a percepção, a intuição, a disponibilidade para criar, a atenção ás demandas do sensível e tantos outros, que levariam a um contorno mais efetivo da individualidade expressiva, não foram relevados em nossa formação; e, admitamos, temos dificuldades para estimulá-los na criança. Escolho, ao fazer esta carta, pensar no professor com sua dificuldade expressiva, e não no aluno. Desenvolvendo-se o primeiro, espera-se uma melhora da interação produtiva entre ambos.
Anoto, pois, algumas informações sobre a natureza do desenho enquanto linguagem e o ato de fazê-lo. A você caberá dispor-se a experimentar as linguagens figurativas e informar-se sobre sua história. Havendo dificuldades para encontrar os materiais privilegiados pelas Artes Plásticas encontrará, seguramente, outros que se adaptarão ás necessidades e criarão novas possibilidades. Lembro-me sempre dos sabiás que viviam próximos à fábrica de palha-de-aço e com este material construíam seu ninho. E vejam bem, vocês, professoras, não estão tão sozinhas: há sempre algum artista plástico por perto que poderá dar conselhos técnicos ou se engajar no ensino; disposto, porém, a se informar sobre os conceitos básicos da Pedagogia.
Só lhes peço três cuidados: carinho com as crianças, liberdade de expressão e... não usar materiais tóxicos!
Desenhar é uma atividade de patrimônio da condição humana. Explicita os desígnios. É conquista da espécie e herança de cada um. Emancipa quem o faz, sejam cidadãos ou povos. Generalizando, digo que há os desenhares que carregam a marca das escrituras pessoais até sua finalização - estes são os chamados artísticos ou expressivos; e há aqueles que visam projetar as coisas de uso coletivo, nos quais aquelas mesmas marcas são encontráveis só nos esboços.
A prática artística emancipa tanto quem a faz, quanto o país que a abriga e a propicia, tornando-o mais universal. Através do desenho de projeto, ao pensar e fazer seus objetos, nações se erguem, se mantêm, delimitam sua autonomia. Ter um desenvolvimento do desenho nacional, artístico e de projeto, é uma das condições para que se exuberem cidadãos, suas situações e ambientes.
Perceber e expressar, ação una do criar, carecem das liberdades que a Escola pode favorecer. É nela que se garante o desenvolvimento das linguagens figurativas, impedindo que estas se percam na história de cada indivíduo, não permitindo que a alfabetização seja um momento de rompimento com este modo de fazer e pensar.
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Nossa conversa ficou árida; para amenizar dou dois exemplos. O primeiro, sobre o papel da Escola: o menino Van Gogh tinha, quando estudante, três aulas semanais de desenho. Isto fazia parte de uma reforma do ensino na Holanda daquela época. Aqueles que querem atribuir somente ao talento a qualidade de sua obra muito se enganam e estão mistificando a criação artística. Não tivesse esse menino aquelas aulas, não podemos afirmar que o resultado seria o mesmo. O segundo exemplo refere-se à soberania: encontrava-se a Itália pobre e perplexa depois da Segunda Grande Guerra, quando, dentre outras atividades, se pôs a valorizar seus artistas plásticos, seus arquitetos e designers. Está aí a Itália de hoje, orgulhosa e até chamando a si os filhos e netos dos que de lá se foram.
Continuando nossa conversa sobre as artes que figuram, lembro-me de Flávio MOTTA (1975, p.7) ao alertar para o fato de que "se vê com o corpo inteiro". Não há como negligenciar a disponibilidade do aparato físico para que ocorram as grafias que figuram. Completo: desenha-se, também, com o corpo inteiro. As emoções for-se-ão presentes no ver, tanto quanto na plasticidade que imprimem ao corpo e que se revelam nas posturas, em movimento ou não. O poeta faz a ponte:
"Todo estado de alma é uma paisagem." (Fernando Pessoa - 1983, p. 73)
Posto desenhar-se com o corpo inteiro, afirmo que "O traço é o registro do gesto."
O aparato corporal que sedia as emoções favorece a gestualidade, impregnando uma da outra. A Profa Eugênia Thereza de ANDRADE acrescenta a característica de duração e unicidade do movimento ao replicar: o "traço é o gesto que se deixou registrar'. É implícita a participação que terá a corporeidade na expressão plástica.
A movimentação que a atividade psíquica permite, ou inibe, está presente no desenho, explicitada pelo gesto e registrada pelo traço. Torna-se movimento, portanto expressão, a situação psicofísica do desenhador. Vida mental e movimento, intermediados pela emoção, ganham forma de Arte.
Neste sentido a Expressão Corporal, com base na Sensopercepção explicitada pela amiga Patrícia STOKOE, faz-se necessária na sala de aula. Ela facilitará as vias expressivas plásticas ao desenvolver as possibilidades do movimento e da consciência corporais, bem como dará uma ajuda específica para a possibilidade de não se perder o desenho no processo de aprender as letras todas. Dentre outras colaborações, acusará o gesto que ousa mecanizar-se; informará sobre os apoios de quem desenha e daquilo que representa; revelará a disponibilidade permitida ou inibida pela tonicidade muscular; falará das estruturas, a começar da estrutura óssea de quem grava os riscos; e, como se não bastasse, facilitará a consulta das emoções e a atenção ao ato de perceber.
A prática da Expressão Corporal na Escola, via Sensopercepção, garantirá ainda uma eficiência contra a Arte que busca seu valor na capacidade de assemelhar-se. As deformações, admitidas pela prática da verificação da auto-imagem corporal, ganharão espaço impondo-se sobre o conceito de belo sustentado pela similaridade. Mais fundamentalmente, a prática da Sensopercepção facilitará o destaque das emoções de um conjunto de sensações e sua viabilização como objetos do fazer artístico.
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Sim, eu sei, as coisas estão-se complicando. Primeiro eu dizia que era necessário que o professor desenhasse para poder estabelecer um diálogo produtivo com o aluno. Agora eu venho com esta urgência de presença da Expressão Corporal. E poderia prosseguir falando do papel fundamental que o teatro, com base na Sensopercepção, conforme formulação feita pela Profa Eugênia Thereza de ANDRADE, tem na Educação. E prosseguiria lembrando das outras linguagens da arte. Estou falando de um projeto para o futuro, onde o saber científico não se dissocia do artístico, nem as artes se desmembram. Sabedores destes fatos podemo-nos dispor e exercer, nós mesmos, alguma arte. Estaremos mais próximos de nossos alunos. Se a arte escolhida para vivenciar for o desenho e a pintura, trata-se de iniciar o processo dando atenção ao gesto que intermeia o traço e quem o faz. Enfim, se formos por este caminho, teremos muito que conversar.
Nas artes da figuração há os mesmos elementos de linguagem que nas demais. Ganham porém, aqui, uma especificidade. O ritmo não se dá no tempo que transcorre e sim naquele que se condensa nos limites de uma folha de papel. Esta mesma folha de papel passará a ser um campo expressivo em que a cada um de nós corresponde uma organização. Neste fazer daremos uma configuração particular à relação espaço/tempo, onde o ritmo será coisa mental. E tudo isto para expressar-se, ação que é condição da autonomia e sobrevivência.
Desenhar é fato tão inerente à nossa espécie que este fazer se manifesta na infância como herança, configura a explicitação de pertinência à espécie e afirmação de cada individualidade quando produz, reproduz, realiza, cria...
A criança desenha com freqüência; o adolescente o faz raramente; e o adulto, quando é artista. Para que se desenhe menos ou nada, entra em ação uma estratégia de inibição da atividade expressiva que tem como personagens a Escola, a família e as comunicações massificadas. Nosso campo de ação, porém, é a Escola. As falas dessa ação são as mesmas para estas três personagens:
- Arte e sensibilidade não são instrumentos do conhecer! - O exercício da arte favorece o delineamento das individualidades, e isso não é desejável!
Quando adultos, porém, serão artistas ou não mais o farão. Detenho-me na Escola. Faltam-lhe insumos e condições suficientes para que tal potencial não se vá. O ensino de 1° e 2° Graus não está apto para que este potencial aflore, permaneça e se desenvolva.
Sei da necessidade, e das vantagens, da incorporação da escrita por parte da criança. Insurjo-me, porém, contra alguns métodos de alfabetização, bem como contra o afastamento gradativo das práticas artísticas dos currículos escolares, no decorrer do crescimento. Um adestramento mecanizante da mão que conduzirá à escrita não compactua com a busca do desenvolvimento infantil. Mecaniza-se o gesto e rompem-se os elos do circuito olho--mão, fundamentais para que percepção se torne expressão.
É importante a presença, com uma carga considerável, das aulas de Artes em todo o currículo até o fim do 2° Grau. Espero, quando isto acontecer, encontrar alunos que não tenham sido lesados em seu potencial expressivo.
Espero não ser necessária a recuperação, pois não se perderão as capacidades de figurar durante o processo educacional.
Submeto minha condição de artista plástico à de educador. Busco o crescimento do aluno sem enfatizar resultados ou talentos. Busco transmitir a arte que se incorpora à vida e aumenta o
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exercício da atenção, através do incremento da fluência entre percepção e expressão, que só o livre e constante exercício das linguagens permite. Se um aluno insiste, ao passar dos anos, em ficar ao meu lado não me nego a favorecer a transformação em qualidade do que era capacidade. Noto que há vocações, indivíduos que têm talento. Talento esse, que nós, arte-educadores, durante anos, quisemos negar em busca de uma postura que democratizava o acesso às linguagens artísticas. Todos têm esta capacidade de expressar-se através das linguagens artísticas e, particularmente, através do desenho; alguns, porém, pela persistência aliada à vocação alcançarão a qualidade. Mas a arte que busco estimular em meus alunos não é a dos milhões, galerias, museus e leilões. Falo do homem, exercendo o que lhe é inerente: a possibilidade artística, e particularmente a de figurar. E se tiver a oportunidade de facilitar o surgimento de alguma grande vocação, nada me resta senão informá-la de tudo que sei e aguardar que se torne pública. E ao se publicar estará reiniciando o ciclo: sua obra será mais um dado para buscar os que se iniciam, e perceber os que admitem, como o Prof. Flávio MOTTA, que a Arte explica a vida!
Um Abraço,
Referências Bibliográficas
MOTTA, Flávio. Textos informes. São Paulo, FAU/USP, 1975.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1983.
STOKOE, Patrícia. Expresión corporal; arte, salud y educación. Buenos Aires, Humanitas, 1990.
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