quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Jogos de expressão escrita online para a expansão de competências cognitivas no processo de ensino e aprendizagem

Sonia Rodrigues é PhD, pesquisadora no Instituto de Física da Universidade Federal Fluminense e criadora de jogos digitais no site www.almanaquedarede.com.br
http://www.ufscar.br/rua/site/?p=2296
Resumo:

O presente artigo discute, brevemente, a importância de jogos para a ampliação de competências cognitivas na expressão escrita, através de experiências realizadas com a metodologia Autoria de criar histórias, desenvolvida a partir da tese de doutoramento, “Roleplaying Game: a ficção enquanto jogo”, de Sonia Rodrigues. A discussão prende-se, principalmente, à contribuição do Jogo dos Diálogos, usado desde 2005, em vários contextos digitais, para a expansão de competências cognitivas no processo de ensino e aprendizagem.



INTRODUÇÃO:

A RELAÇÃO ENTRE UMA TESE DE DOUTORADO E A CRIAÇÃO DE JOGOS DIGITAIS.

O jogo norte-americano conhecido como Roleplaying Game (Jogo de representação) apresenta várias qualidades atraentes para o processo de ensino e aprendizagem. No exercício das partidas, os jogadores são levados a tomar decisões, e seus personagens/avatares enfrentam situações-problema.

Isso se dá pelo próprio modus operandi do jogo: o Roleplaying Game é um jogo de produzir ficção. Uma aventura é proposta por um narrador principal - o mestre - e interpretada por um grupo de jogadores. A ação pode se passar em vários “mundos”: de fantasia medieval, de terror ou futurista. Pode também interagir com um universo ficcional preexistente. As regras do RPG são as regras da narrativa (Rodrigues, Sonia. P.18).

A escola vem tentando há muito usar o RPG em sala de aula. Ocorre que todo jogo se dá por adesão voluntária, com objetivo específico, interno ao jogo. No caso do jogo presencial, o mestre é um jogador autodidata, com talento para a narrativa, com disciplina para adquirir habilidades inerentes ao seu papel de “guia” da trama coletiva e, muitas vezes, com acesso a facilidades com um nítido vínculo à situação socioeconômica. O mestre do Roleplaying Game compra ou conhece livros de regras, inclusive em inglês. Criar um contexto semelhante é o grande desafio de incorporar games ao esforço de ampliar competências e habilidades no quadro educacional brasileiro. Aliás, se tornam necessários não só jogos, mas especialmente jogos digitais:

Os resultados do ENEM, disseminados pelo MEC / SAEB, reforçam a necessidade de estudos e atitudes que otimizem o letramento informacional para a leitura, fortalecendo, assim, no Ensino Superior, o ato de ler. Apresenta, ainda, as diferenças associadas à escola pública e à escola particular, a última com índices mais altos que os da escola pública. Destacam-se as médias associadas à escolaridade do pai e da mãe e à faixa de renda familiar. As médias mais baixas, localizadas na escola pública, estão articuladas à ausência de escolaridade dos pais e às mais baixas faixas de renda familiar de um salário mínimo, inferindo-se que a desigualdade de letramento familiar e conseqüente falta de acesso à informação reflete-se no grau de proficiência cognitiva dos alunos (Varela e Guimarães. p.04.122).

O RPG, no entanto, é um jogo calcado na oralidade. Os jogadores melhoram a habilidade de expressão, verbalizam a imaginação, mas não escrevem (ou escrevem muito pouco). Desenvolver jogos que possam ser usados em sala de aula com os objetivos de ampliar competências e desenvolver habilidades, inclusive em contexto digital, passa por enfrentar as dificuldades de leitura, mesmo entre classes com onze anos de escolaridade, como é o caso das turmas de ensino médio:

Segundo as considerações pedagógicas sobre o ENEM 2001 e 2002 (BRASIL, 2001; BRASIL, 2002), a ausência do domínio de leitura compreensiva foi a causa principal de situar-se o desempenho dos participantes do ENEM entre insuficiente e regular, visto que a leitura compreensiva é um processo global difuso, intrinsecamente ligado às intenções do participante (leitor), dos professores autores das situações-problema, e ao contexto sócio-histórico em que tanto o autor quanto o leitor estão imersos. (idem.p.05.123).


JOGO DOS DIÁLOGOS: CONTRIBUIÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS COGNITIVAS


A partir da defesa da tese “Roleplaying Game: a ficção enquanto jogo” em 1997, e da criação do jogo Autoria de criar histórias, em 1998, foram desenvolvidos vários jogos educativos. De 2005 a 2009, um deles em particular, que hoje tem o nome de “Jogo dos Diálogos”, depois de várias versões, corresponde a parte do Roleplaying Game, que é o diálogo entre personagens. Comparando a uma batalha, a uma partida de jogo, se assemelharia a uma cena, representada por dois jogadores, mas articulada por um só, porque é escrito e publicado online.

Esse jogo avança na direção de reforçar a habilidade de relacionar situação-problema, apresentada em linguagem culta, com a linguagem de quadrinhos e, eventualmente, dados contextuais de determinada área de conhecimento. Na comunidade do site www.almanaquedarede.com.br, existem bibliotecas de situações e personagens. A partir de uma lista gerada nessas bibliotecas, os usuários da comunidade - que engloba 3000 alunos do ensino médio do Rio de Janeiro - compõe suas cenas.

A tarefa empreendida pelo jogador (individual) é realizada por meio das seguintes ações, explicitadas nas regras do jogo:

Escolher uma situação-problema, escolher dois entre os quatro personagens oferecidos relacionados com a situação, escolher um dos três problemas que combinem com os personagens na situação, escolher qual personagem começa o diálogo, escrever um diálogo entre os personagens relacionado com a situação e o problema escolhido, preencher os seis quadrinhos disponíveis.

É um enunciado com seis diretivas e dá a medida do quanto o jogador consegue relacionar informações para construir um texto coerente. Nem sempre isso é conseguido da primeira vez. Porém, como existe a biblioteca de situações e de personagens relacionados, a repetição da experiência acaba por ampliar a capacidade de leitura compreensiva e de expressão escrita, na cena, com resultados, muitas vezes, surpreendentes até para o jogador. Nesse sentindo, precisamos considerar também que, para entendermos como se dá a construção do conhecimento no processo de ensino e aprendizagem usando jogos digitais, precisamos oferecer o máximo de oportunidades para que o usuário possa se engajar na atividade de formas diferentes (Vygostsky (b) p. 14).

A realização do jogo concretiza, pelo menos, um dos eixos cognitivos listados pelo MEC para o Enem: selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema. (Brasil, INEP.p 01). Para construir uma cena, o usuário precisa selecionar elementos do seu repertório cultural, organizar esses elementos, relacionando-os com informações apresentadas pelo enunciado e aplicar no diálogo entre os personagens.

Examinando a produção das tiras, no entanto, se observa grande dificuldade dos jogadores de exercerem a linguagem propriamente dita no suporte dramático da cena provocada pela situação-problema. Talvez isso se deva a uma cultura escolar que privilegia a palavra em detrimento da percepção visual. O aluno da rede pública chega ao ensino médio sem o hábito de relacionar visualização, análise e expressão, e não consegue articular nenhuma das três habilidades na produção escrita.

O jogo digital sob forma de cena de HQ pode contribuir para que essa lacuna seja preenchida. É rápida a expansão (ou recuperação) da competência de relacionar quando se junta as duas tendências opostas da percepção. Elementos independentes numa tira de quadrinhos são percebidos simultaneamente. A fala, por outro lado, requer um processamento seqüencial. Os elementos, separadamente, são rotulados e, então, conectados numa estrutura de sentença, tornando a fala essencialmente analítica. No caso da escrita, então, além de analítica é abstrata porque a palavra escrita representa, sozinha, sem apoio de gestos e expressão corporal um objeto, gesto, sentimento que evoca (Vygostsky (a) p.37).

Outra coisa importante de se observar no uso do Jogo dos Diálogos online é o desenvolvimento do hábito de partilhar, online, experiências cognitivas e a identificação de talentos para a escrita autoral. O jogo foi conceituado prevendo comentários dos “leitores”, ou seja, de outros usuários depois que o autor publica sua tira de quadrinhos e sua cena.

A experiência do Jogo dos Diálogos, no www.almanaquedarede.com.br, é rica nesse sentido. Os usuários recebem pontos pela participação nos comentários e pontos pela construção dos diálogos, e esses pontos aparecem num placar, com nome e colégio. Neste contexto, a escrita passa a ser, além de um esforço, uma abstração, uma brincadeira colaborativa envolvendo prêmios e, talvez principalmente, aplausos da torcida, além da satisfação do jogador.

Vale ressaltar também que um jogo de resolução de problemas com elementos visuais articulados a linguagens distintas (diálogo/discurso direto, Quadrinhos) torna claro que algumas pessoas têm mais facilidade do que outras de fazerem essa quantidade de relações. É difícil afirmar, sem uma pesquisa mais direcionada, se adolescentes da rede pública apresentam dificuldade de relacionar várias linguagens porque têm um “estoque” menor de inteligência visual espacial do que outros ou se apresentam dificuldades de identificar, selecionar, relacionar elementos de várias linguagens porque não foram estimulados a fazer isso.

Os estudos de inteligências múltiplas apontam para a hipótese de que existem maneiras diferentes de aprender e que lacunas no processo de aprendizagem da codificação lingüística e matemática na infância podem tornar muito difícil o contato com essas disciplinas na idade adulta (Lent, 2004, p.144, cit. Por Brennand).

Estudos sobre atividades matemagênicas (Reeves et al. 2002) sugerem que atividades autênticas online podem se constituir como facilitadores de codificações importantes para o processo de ensino e aprendizagem. Aplicado o modelo de Reeves à versão 2006 do jogo Diálogos, Barreto (2007) concluiu que o jogo apresenta todas as dez características de uma atividade autêntica porque proporciona exercícios:

“… Relevantes para o mundo real… os casos propostos… representam cenários contextualizados… a situação inicial é pouco definida de forma a dar margem para uma infinitude de problemas… requerem investimento de tempo… oferecem múltiplas perspectivas de análise: o fato de o aluno escolher dois personagens, frequentemente com posições antagônicas é, por si, um exercício argumentativo… Oportunizam a colaboração: as possibilidades de discussão em grupo são incalculáveis… Favorecem a reflexão… Encorajam perspectivas multidisciplinares… Integradas à avaliação… avaliação do aluno nessa atividade, são considerados seu potencial argumentativo, sua capacidade de análise e crítica…sua percepção do conteúdo e sua capacidade de contextualização e aplicação de conceitos…São, em si, um produto…Permitem soluções múltiplas…”

(Barreto, CC. p. 103-125.).

Conclusão:

Jogos de criar histórias mobilizam competências que as pessoas, escolarizadas ou não, exercem desde que se apropriam da linguagem, na infância. No entanto, para fins de aplicação no processo de ensino e aprendizagem, muito ainda precisa ser pesquisado, analisado, na direção de compreender como a atividade de imaginar atinge pessoas que se organizam em torno de um jogo de ficção. Quem são os jovens da rede pública do Rio de Janeiro que usam o Jogo de Diálogos? Que tipo de Quadrinhos eles produzem? Como as competências cognitivas e habilidades se articulam nessa produção? Quais as fontes, qual a trajetória intelectual e imaginativa desses jovens? São perguntas essenciais a serem respondidas. Não sabemos essas respostas ainda, mas, graças à tecnologia temos em banco de dados elementos que nos permitirão respondê-las.

É importante que o uso de jogos digitais na escola seja acompanhado de módulos de avaliação, de preferência também digitais e que a avaliação seja transparente como a produção dos usuários. Porque se os alunos publicam seus quadrinhos, os professores também devem publicar seus critérios de avaliação e seus comentários.

O acompanhamento da repercussão de jogos visuais espacial como o Tetris no desenvolvimento cerebral vem sendo mensurado (Haier1*Richard, 2009) por imagem. Avaliar o impacto de jogos de linguagens como o Jogo de Diálogos no desempenho intelectual dos usuários é o próximo passo da nossa pesquisa.


Referências bibliográficas:

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Instituto

Nacional de Exames e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. DIRETORIA DE AVALIAÇÃO PARA CERTIFICAÇÃO DE COMPETÊNCIAS. MATRIZ DE REFERÊNCIA PARA O ENEM 2009. Brasília: MEC/INEP, 2009.


Brennand, Edna G. de G. e Vasconcelos, Giuliana C. (2005). O Conceito de potencial múltiplo da inteligência de Howard Gardner para pensar dispositivos pedagógicos multimidiáticos. Ciências & Cognição; Ano 02, Vol 05. Disponível em www.cienciasecognicao.org Acesso em: jul.2009.

BARRETO, C. C. . Praticando a boa prática. In: Ministério da Educação - Fundação Cecierj / Consórcio Cederj. (Org.). Planejamento e elaboração de material didático impresso para EAD - elementos instrucionais e estratégias de ensino. 01 ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj / Cederj, 2007, v. 01, p. 103-125.

Haier1*Richard J., Karama2, Sherif Leyba3Leonard, Jung,4 E.Rex MRI assessment of cortical thickness and functional activity changes in adolescent girls following three months of practice on a visual-spatial task. Disponível em http://www.biomedcentral.com/imedia/1313711047268634_article.pdf?random=184853. Acesso em: ago. 2009.

Reeves, Thomas C., Herrington, Jan, Oliver, Ron. Authentic activities and online learning. Disponível em: http://elrond.scam.ecu.edu.au/oliver/2002/Reeves.pdf. Acesso em: jul.2009.

Rodrigues, Sonia. Roleplaying Game e a Pedagogia da Imaginação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil. 2004.

Varela Varela, Aida e Guimarães, Igor. Apreensão e construção do conhecimento científico: descompasso

entre necessidades informacionais e pensamento crítico. Disponível em: // revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/viewFile/208/123. Acessado em ago.2009.

VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

_______________. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

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