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quarta-feira, 2 de setembro de 2009

MEDIAÇÕES CULTURAIS E A REIFICAÇÃO DA INFÂNCIA

PAULO ALEXANDRE CORDEIRO DE VASCONCELOS
Universidade Anhembi Morumb  -UNP
Doutor em Ciências da Comunicação – ECA-USP

Iniciando

Pensar a infância é refletir sobre a sociedade nas malhas de seus discursos e práticas e, assim, estabelecer elos com as mediações culturais propostas dentro do imaginário das mídias e da sociedade. Para refletirmos sobre o tema, não há como fazê-lo senão dentro de uma perspectiva multidisciplinar.
Produzir um pensamento crítico social é tarefa de abordagens múltiplas e, do mesmo modo, a infância assim deverá ser tratada.
Refletir sobre a infância é tarefa nossa, comunicadores empenhados num projeto ético e aberto às incursões da História e ao que ela nos ensina, e, acima de tudo, a um projeto crítico dos meios de comunicação, no sentido de buscarmos a construção de um consumidor crítico da mídia, ou, como nos propõe Kellner, uma “pedagogia crítica da mídia”, para melhor fixarmos até o conceito de cidadania(1).
Nossa prática de pesquisador, a partir das reflexões de nosso trabalho, tem nos apontado algumas questões, entre elas estão as aglutinações na comunicação do imaginário versus o real, face ao campo da infância e é a partir disto que nos propomos a refletir.

A criança: tempo dos adultos

A história do homem burguês encontra-se transversada pela história da família e da criança. O perfil do homem burguês se caracteriza, entre outros fatos, pela busca da individualidade, do patrimônio, através do trabalho, e o estabelecimento de uma política de produção e consumo.
A família no patriarcado se constitui como pedra fundamental que busca realizar esses três momentos de busca. Junto a isso, a família produz um processo de adultização infantil para garantir o espaço da sucessão e, automaticamente, a do gerenciamento do patrimônio familiar. Adultizar é também garantir a posse dos bens familiares burgueses e promover a continuidade dos bens. A infância não é um momento apenas de formação – como a história vem nos ensinando –, mas de adestramento para as perspectivas ideológicas da família. O econômico e o consumo são ferramentas que permitem inseri-la no mundo social, de modo a fazê-la partícipe do projeto social ou a marginalizá-la como o devir histórico assim descreve.
Ao longo do trajeto histórico, do aparecimento da burguesia até nossos dias, percebe-se uma proposta à criança, no sentido de fazê-la não só reprodutora dos valores sociais da família, e reprodutora da atualidade social, como transgressora e, nesse sentido, a mídia adentra o campo das influências e da transgressão, da adultização, não só pela garantia do poder econômico, mas para dar-lhes uma identidade costurada no simulacro do consumo, que insiste em atribuir-lhe identidade a partir da participação dos cânones, produtos e performances que a sociedade acata no discurso midiático.
Se a transgressão é fato na história da infância, como o novo que ela repropõe, a mídia se utiliza desse álibi para propor a transgressão como fato usual, corriqueiro. A mudança: a transgressão é o grande mérito para fortalecer seu projeto político no cerne da estrutura da publicização dos interesses econômicos.
A mídia se constitui como projeto comunicacional de um grande Outro sob o qual alimenta o imaginário coletivo, e disso a publicidade sabe muito bem, como lembra Baudrillard, desde o Sistema dos Objetos(2).
A mídia, na sua estrutura e trama comunicacional, investe na estratégia da simulação ou da hipersimulação, no desejo de fisgar os sujeitos para a atenção ao seu discurso de publicização e interferência no imaginário, em que realiza o espetáculo da cultura reificada no tônus econômico e das lógicas perversas dos modelos em circulação, na cultura encenada na mídia.
Os recursos para tal trama – que se destacam na contemporaneidade – passam pela prevalência das narrativas pela imagem, buscando tornar mais real e significativo, quando na verdade o discurso intenta, evidenciar o mágico, o fantasioso, de modo a propor um novo real que aproxime o sujeito para sua atenção, seu discurso.
A publicidade se destaca, nesse sentido, por sustentar o projeto midiático, em nível econômico, e simula solidarizar-se com a produção cultural ao tomar o imaginário coletivo como isca, produzindo uma identidade com o público, mesmo que esta esteja a serviço do aliciamento ao consumo.
Entre seus novos desafios, encontra-se a criança/adolescente como a mais nova meta para o fisgamento.
Por sua vez, a criança, os jovens divididos socialmente, e até mesmo confinados, anseiam pelo espaço público da mídia em que se enxergam, publicam sua identidade e pensam ali fazer as interlocuções entre as outras classes sociais, a partir deste álibi comunicacional.

Infância e as mediações culturais

Ao contemplarmos, em estudos anteriores, a questão da infância, Psicologia (o jogo) e Pedagogia (uso do jogo), chamamos a atenção para os ditames históricos quanto ao delineamento do conceito dentro do processo social em que argumentamos:
“Se nos séculos XVI, XVII, e XVIII, as contribuições da Filosofia foram efetivas para indicar as peculiaridades da infância, ali ficou oculto um princípio ideológico, como cita Krammer, que é a questão do social. Ou seja, mesmo com as reflexões da natureza infantil, não se pode homogeneizar a questão, tendo em vista os mecanismos sociais e, portanto, suas iguais particularidades determinantes e refletidas sobre a natureza, o ser.”(3)
Aponta Krammer que não podemos nos isentar do social, e fixarmo-nos num pretenso científico isolacionista, para podermos entender a dimensão do tema. Necessário se faz mergulharmos na dimensão do social, para ali entendermos melhor o caráter psicológico e pedagógico de modo a melhor cercar o tema.
O que nos chama atenção é a necessidade de não enveredarmos pelo viés da pura abstração do conceito, sem refletirmos sobre a “significação social da infância”(4).
Caligaris chama atenção para a diversidade em que submetemos a noção de criança, em seu artigo O Reino Encantado Chega ao Fim, nos remetendo a pensar na ideologia criada na modernidade, em que se estrangula a infância ao longo do trajeto histórico das sociedades industrializadas, ou em vias de industrialização. “A criança é uma caricatura da felicidade impossível: vestida de feliz, isenta das fadigas do sexo e do trabalho, idealmente despreocupada...”(5)
Indaga e esclarece, o mesmo autor, se na verdade o amor que inventamos na modernidade permanece, ou não se trata de um mito criado que se esgarça nos meandros da perversidade do capitalismo industrial e que não deu conta de acompanhar o mesmo mito da infância.
“A infância talvez tenha sido a mais duradoura das utopias concebidas pela modernidade. Com tantos outros ideais imaginados nos últimos 200 anos, o mundo maravilhoso das crianças também entra em crise na era pós-industrial e pós-moderna...”(6)
O aparecimento do processo de adultização nos últimos anos age como o contraponto ou a negação do mito, que criamos, de uma infância que se recobria da aura de congelamento.
O desenvolvimento da mercadoria, como objeto de desejo extremado na sociedade pós-industrial, aperfeiçoa estratégias para criar novos consumidores e atinge a infância contradizendo o mito da pureza e da incapacidade em face das delícias do consumo.
Invadida pelo consumo, parte da infância sacia seus desejos de consumista e, de outro lado, uma outra infância fica excluída desse aspecto. Nasce um imaginário de vitimização, de exclusão – de marginalização.
Lasch, ao contemplar tal questão, diz:
“A produção de mercadorias e o consumismo alteram as percepções do eu como do mundo exterior ao eu; criam um mundo de espelhos, de imagens insubstanciais, de ilusões cada vez mais indistinguíveis da realidade. O efeito do especular faz do sujeito um objeto; ao mesmo tempo, transforma o mundo dos objetos numa extensão ou projeção do eu. É enganoso caracterizar a cultura do consumo como uma cultura dominada pelas coisas. O consumidor vive rodeado não apenas de coisas como fantasias. Vive num mundo que não dispõe de existência objetiva ou independente e que parece existir somente para gratificar ou contrariar seus desejos....”(7)
A tecnologia industrial, além de diversificar os objetos do desejo, produziu a fantasia e especializou-se numa indústria cultural que, para a grande maioria da população infantil, solapou o universo lúdico simples – tosco-artesanal – e não deu, em troca, nada senão a produção de uma vitimização e de marginalidade.
Com a destruição dos espaços lúdicos e públicos – o quintal, a praça, os folguedos –, tudo gira em torno do novo objeto lúdico industrial que faz a manutenção do cultural. Disto resulta um confinamento geral da infância, tendência, aliás, anterior à modernidade, como bem aponta H. Arendt, quando a sociedade, a partir da Idade Média, descamba para uma privatização da vida social; à medida que a burguesia ascende ao comércio, a produção de bens ocupa o poder hegemônico. Com isso, assegura a autora que a sociedade passará “a um híbrido no qual os interesses privados ganham uma importância pública(8).
Os grandes ajuntamentos empobrecidos a serviço (mão-de-obra) da indústria, e sem o tempo para o exercício da tutela, indiretamente substabelecem a tutela dos menores ao Estado, que desprovido de especialidade, entrega, quando pode, ao particular ou ao desgastado serviço da Escola Pública.
Disso resulta, como aponta Perroti:
“Neste estrangulamento do político, de redução crescente do espaço público e de sua transformação em espaço social privado, governado por proprietários ‘que não buscam senão aumentar as próprias fortunas’, ocorrerão mudanças fundamentais nas formas de conceber e organizar a infância. Como não poderia deixar de ser, a privatização das relações sociais alcança a vida infantil, fazendo também que crianças e jovens se distanciem cada vez mais do que resta de vida pública, à medida que a ordem burguesa vai-se constituindo. Com a burguesia, pouco a pouco e à medida que a urbanização evolui, a infância passa a viver confinada nos espaços propriamente privados – os espaços domésticos – ou nesses híbridos ao mesmo tempo sociais e privados – os espaços confinados especializados (creches, internatos e outros).”(9)
Estratificada a infância pelo confinamento sócio-econômico, ela é vítima mais uma vez de um novo confinamento – o cultural.
A Escola Pública segrega o menor de baixa renda do contato de outros estamentos sociais – classe média e alta –, havendo com isso uma perda de circulação da cultura que não interage com outro grupo e cultura. A Escola passa então pelo confinamento da cultura, resultado direto da perda das diversidades.
A acessibilidade à cultura passa a ser praticada em parte e se dá, por quase todas as classes sociais, sobretudo em função da mídia. Dentro de seu padrão particularizado, destaca-se a reinterpretação do cultural através da publicidade.
O acesso à cultura via mídia se dá dentro daquilo que ela elege como sendo viável ou não no seu projeto maior, que é o consumo.
À medida que a mídia, em sua expansão, relegou a infância do rádio, tragou-a ao status de consumidora no modelo televisivo e cinematográfico, impediu-a de uma recepção na rede mundial de computadores, para só então considerá-la na inclusão do status de consumidora, ou assinante, caso também da TV a cabo. O grande confinamento está estabelecido e ratificado pela precariedade das mediações tecnológicas da Escola Pública.

Infância e mídia: brecha e imaginário

“Imaginação. Fantasia. Descoberta. Sonho. É isso que se apresenta em qualquer atividade ou experiência humana que não se limita a reproduzir fatos ou impressões vividas, mas que as combina produzindo novos objetos, novas imagens, novas ações.”(10)
A imaginação, advinda do subjetivo, mesclada pelas influências do social, retorna ao social em forma de produto da criação, atestando realidade imaginária e objetividade social.
“Imaginação e realidade estão sempre relacionadas, na medida em que é possível criar uma obra, um objeto ou um instrumento que não corresponde a nenhum objeto real. Assim, a experiência – ampliada pela imaginação – se materializa num produto. E essa obra criada extrapola o autor.”(11)
A força da relação – realidade/imaginário – se dá em função do processo semiótico, que assim age como verdadeiro catalisador desse duplo. O signo e os instrumentos (objetos), na obra de Vygotsky, constituem um dos conceitos fundamentais para a compreensão dos sistemas de linguagem, da consciência e mesmo da imaginação.(12)
Os signos e os instrumentos correspondem à forma como o indivíduo se relaciona com a natureza e a transforma. Esse dado de transformação e mudança é fundamental na obra de Vygotsky, pois denuncia o caráter histórico dos fenômenos culturais. Daí aquele autor admitir que a imaginação não é isolável no nível do subjetivo, particular, mas pertencente a um social, coletivo, que transita amalgamado pelos mesmos.
No que diz respeito à questão do real e do imaginário no constructo sócio-histórico, é fundamental que se perceba que a ordem do real é submetida pela ordem da representação do imaginário, ou como ainda se expressa Angel Pino: “Real e imaginário opõem-se não em termos de verdade e ilusão, como fazem o idealismo e o realismo empiricista, uma vez que o real não se apresenta de forma direta e imediata, mas sua representação, a qual é uma formação imaginária...”(13)
Pino destaca ainda, ao discutir a mediação semiótica em Vygotsky, “a questão filosófica e psicológica, do acesso ao real”. Na verdade, esta questão envolve o caráter da realidade, que se envolve numa teia ambígua, pois temos realidade, como expressão do real e realidade, como exterioridade do real. Constituem-se de fato nas três ordens: o simbólico, o real e o imaginário, que se entrelaçam. É pois o real aquilo que se apresenta sob a forma de produção semiótica do símbolo e que relata um imaginário.
Tomemos agora um novo aporte do imaginário e suas correlações com a fantasia, como propõe Jurandir Freire Costa:
“o termo imaginário é a substantificação de uma atividade psíquica, a imaginação. Imaginação por sua vez, é a derivação latina da fantasia em grego. No pensamento grego, fundamentalmente em Aristóteles, a questão da phantasia pertencia ao quadro da gnoseologia. Phantasia deriva do substantivo phaôs, que significa brilhar, dar a luz, especialmente referido aos corpos celestes. Desta última palavra deriva dois verbos phainô (mostrar), com sua freqüente forma intermediária phainomai (aparecer) e phantazô (tornar visível, aparecer, mostrar-se a si mesmo), donde os nomes verbais phantasia e phantasma. Em latim, imaginativo vem do verbo imaginari, que por sua vez deriva do substantivo imago, contração de imitago. Imitago vem do verbo imitari, cujo radical im é a mesma de similis, e que significa imitação, semelhança.”(14)
Desta especulação etimológica percebe-se, contido em imaginar: mostrar, aparecer, tornar visível, imitar, fantasiar. Ora, habitamos então na aparência da linguagem, da representação e da imaginação, ou seja, o homem só conhece a essência pela aparência.(15)
A aparência é aquilo que podemos resgatar pela imaginação, representada pela linguagem e percepção.
Costa, ao tomar Hume, chega a mostrar a relação entre o imaginário e o social: “nenhuma idéia pode existir na imaginação sem ter sido causada por uma impressão prévia...”(16). Ora, poderei até deformar o percebido, do social, mas sua fonte é ele e minha subjetividade ressignificante.
Nesse sentido, a educação informal promovida pela mídia é fomentadora do real-imaginário e do simbólico, suscetível de reinterpretações do real, buscando tocar o sujeito na sua subjetividade, ou enredá-lo na trama de um discurso ideologizado, na trama correspondente das metas do consumo e seu imaginário.
Ataca a mídia pela simulação, aproveitando-se da brecha nas estruturas da linguagem e do ser desejante, e das aparências perceptivas. À medida que assim procede, propõe-se uma nova imagem de infância desenhada nos contornos da força dos canais midiáticos, estruturados nas demandas imaginárias, de um pacto perverso cerzido à custa de narrativas fantásticas que ainda nos faz adormecer, mesmo sendo um verdadeiro pesadelo.
Como nos acomodamos a isso? Que interdito ou permissividade damos? E, afinal, o que é a infância? Que imagens constantes em nosso imaginário, e que alimentam o nosso simbólico, dizem respeito a infância?
Referências bibliográficas
1. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru, Edusc, 2001.
2. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo, Perspectiva, 1973.
3. VASCONCELOS, Paulo A. C. Uma abordagem piagetiana do jogo.
Dissertação de mestrado – ECA/USP. São Paulo, 1993.
4. KRAMMER, Sonia et all. Infância; fios e desafios da Pesquisa. Campinas, Papirus, 1996.
5. CONTARDO, C. O reino encantado chega ao fim. In: A Folha de São Paulo, Caderno Mais, Julho de 1995.
6. Idem.
7. LASCH, C. O mínimo eu. São Paulo, Brasiliense, 1986. p. 87
8. ARENDT, H. A condição humana. Forense-Universitária-Edusp, 1981.
9. PERROTI, E. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo, Summus, 1990. p. 113
10. KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo, Ática, 1993. p. 87
11. Idem. p. 88
12. VYGOTSKY,L.S. A formação social da mente. Trad. de J. C. Neto, L. S. M. Barreto e S. Cafeche. São Paulo, Martins Fontes, 1984.
13. PINO, A. O Conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na explicação do psiquismo humano. Caderno Sedes 24. São Paulo, Cortez, 1991.
14. MANZEDO apud COSTA, J. F. Psicanálise e contexto cultural. São Paulo, Brasiliense, 1989.
15. Idem.
16. Idem

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